O andarilho chutava latas solitárias pensando nos anos de felicidade que se foram.
Seu ofício de andar se tornava sempre mais leve a medida que boas memórias o moviam.
Suas doces lembranças saltavam ao rosto transformadas em sorrisos singelos.
Nunca olhava ninguém diretamente nos olhos, se bastava em seu mundo hermético.
Suas conversas duravam horas, sem que uma só palavra fosse dita à alguém.
Seu companheiro inseparável: seu saco sujo de roupas curvava um olhar ao chão.
Ria, gesticulava, argumentava com veemência: sempre no sentido do vazio.
Só ele enxergava seu parceiro de caminhada: completo em si mesmo, era pleno.
Minha curiosidade sobre suas histórias só aumentava a medida que sua independência se firmava.
Olhava invejoso toda aquela auto-suficiência, sua autonomia me incomodava.
Como alguém que vive só, dorme mal, come de vez em quando, ainda pode acordar todos os dias e caminhar?
Seu sorriso satisfeito, que dificilmente o abandonava, iluminava todo o seu redor.
Aquele caminhante me inspira todos os dias: seu semblante não me passa nenhum sofrimento.
Só um lembrar e um recordar infinitos que o faziam um vencedor de si. Absolutamente completo.
Se ser louco é isso, então é assim que quero envelhecer. Vivendo, rindo e lembrando.
Futuro? Acho que não. Seu hoje é o que importa para que seu passado retorne sempre vivo.
Tentei construir um milhão de histórias que ele nunca fez questão de me contar.
Seu passado só interessava ao seu companheiro imaginário, parceiro de muitas lutas.
Desprezado, invisível aos olhos da multidão, mas nunca aos meus. Sempre o acompanhava absorto.
Acho que um dia fui notado por ele: pra mim uma surpresa e uma conquista.
Percebeu, mesmo sem me olhar, que eu o seguia com os olhos e com o pensamento.
Queria tanto uma pontinha de conversa com aquele ser intrigante e autônomo.
Aproximou-se devagar e sorrindo levantou os olhos em minha direção.
Meu coração acelerou diante do fato raro. O que ele dirá?
Absolutamente certo de que não me pediria nada, só esperei.
Olhou bem no fundo da minha alma e com a voz enrouquecida pelo tempo disse-me: Obrigado!
Entregou-me um pedaço de papel de pão sujo e deu meia volta, sem mais uma palavra.
Cheguei a arriscar um “por que”, mas logo abaixou sua cabeça e continuou sua andança.
Calado, surpreso com o inusitado, gritei antes que se distanciasse: Eu que agradeço senhor!
Sem olhar para trás, apenas acenou, levantando um dos braços.
No papel, uma poesia feita de palavras desconexas: para mim soaram como merecedoras de um Nobel.
Vai andarilho, siga em paz o seu lindo caminho e não me conte nada, seja feliz.
Pensei, refleti e dobrei aquele momento com todo o carinho para não amarrotá-lo.